terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Quatro

Na parte principal da cidade de Caldwell tinha um monte de prédios altos, mas havia poucos como o Commodore. Com bons trinta andares de altura, estava entre os mais altos na floresta de concreto e abrigava cerca de sessenta condomínios do tipo Trump-tastic, todo em mármore e níquel e designer cromado.

No vigésimo sétimo andar, Jane andava pelo apartamento de Manny, procurando sinais de vida e encontrando... Nada. Literalmente. O lugar do cara era no máximo uma pista de obstáculos em uma maldita pista de dança, sua mobília consistia de três coisas na sala e uma cama enorme na suíte máster.

Era isso.

Bem, e alguns tamboretes de couro no balcão da cozinha. E nas paredes? A única coisa que ele tinha pendurado no lugar era uma TV de plasma do tamanho de um outdoor. E o piso de madeira não tinha tapetes, só bolsas de ginástica e... Mais bolsas de ginástica... E calçados esportivos.

O que não se podia dizer que ele era um pateta. Ele não possuía o suficiente para ser considerado um pateta.

Com pânico crescente, ela entrou em seu quarto e viu meia dúzia de roupas hospitalares azuis deixadas em pilhas no chão, como poças d'água após uma chuva e... Nada mais.

Mas a porta do armário estava aberta e ela olhou dentro.

— Deus... Droga.

O conjunto de malas alinhadas no chão eram pequenas, médias e grandes - e a do meio não estava lá. Então, tinha um terno pendurado num cabide e espaços entre pares de camisa e de calça.

Ele estava fora, em uma viagem. Talvez durante todo o fim de semana.

Sem muita esperança, ela discou no sistema do hospital e o bipou mais uma vez...

Seu telefone anunciou uma chamada em espera, ela olhou para o número e amaldiçoou novamente.

Respirando fundo, ela atendeu:

— Ei, V.

— Nada?

— Nem no hospital ou aqui no seu apartamento. — O rugido sutil chegando pela ligação amplificou sobre ela vindo de lugar algum, a invadiu. — E eu verifiquei a academia no caminho até aqui também.

— Invadi o sistema do St. Francis e tenho sua agenda.

— Onde ele esta?

— Tudo o que disse foi que Goldberg está na chamada, certo? Olha, o sol esta se pondo. Eu vou sair daqui, tipo, uma...

— Não, não... Você fica com a Payne. Ehlena é ótima, mas eu acho que você deveria estar aí.

Houve uma pausa grande, como se ele soubesse que estava sendo mantido desligado.

— Qual seu próximo passo?

Ela agarrou o telefone e perguntou-se para quem ela deveria orar. Deus? Sua sogra?

— Eu não tenho certeza. Mas eu o bipei. Duas vezes.

— Quando você encontrá-lo, chame-me e eu irei buscá-los.

— Eu posso chegar em casa...

— Eu não vou machucá-lo, Jane. Eu não estou incentivado a cortá-lo.

Sim, mas indo por esse tom de voz frio, ela teve de se perguntar se os melhores planos estabelecidos de ratos e vampiros, blá, blá, blá... Ela acreditava que Manny viveria para tratar da gêmea de V. Depois? Ela tinha suas reservas - Especialmente se as coisas se afundassem no centro cirúrgico.

— Eu vou esperar mais um pouco. Talvez ele apareça. Ou ligue. Se ele não vier, eu vou pensar em outra coisa.

No longo silêncio, ela praticamente podia sentir uma corrente de ar frio através do telefone.

Seu companheiro fazia um monte de coisas bem: lutar, fazer amor, lidar com qualquer coisa num computador. Ser forçado à imobilidade? Não é competência de um núcleo. Na verdade, foi garantida a fazê-lo mental.

Ainda assim, o fato de que ele não confiava nela à fez sentir distante.

— Fique com sua irmã, Vishous. — Disse ela em um tom uniforme. — Eu estarei em contato.

Silêncio.

— Vishous. Deixe isso comigo e vai ficar com ela.

Ele não disse mais nada. Só cortou a conexão. Quando ela desligou o telefone, amaldiçoou.

Uma fração de segundo depois, ela discou de novo, e no instante em que ouviu uma resposta de voz grave, ela teve de espantar uma lágrima que para toda a sua translucidez era muito, muito real.

— Butch, — Ela resmungou. — eu preciso da sua ajuda.

Com o pouco que restava do pôr do sol desaparecendo na noite batendo o cartão de ponto e o turno seguinte assumindo, o carro de Manny supostamente deveria ter ido para casa.

Deveria ter-se dirigido diretamente para Caldwell.

Em vez disso, ele acabou no extremo sul da cidade, onde as árvores eram grandes e os trechos de grama em desvantagem com o asfalto de dez hectares para um.

Fazia sentido. Cemitérios tinham que ter bons trechos de terra flexível, porque não era como se você pudesse enterrar um caixão no concreto.

Bem, acho que você poderia - chamava-se um mausoléu.

O cemitério Pine Grove ficava aberto até às dez da noite, seus portões de ferro maciço escancarados e os seus inúmeros candeeiros em ferro forjado amarelo-manteiga brilhante ao longo do labirinto de pistas. Quando ele entrou, ele foi para a direita, os faróis xênon do Porsche iluminando ao redor e se estendendo ao longo das lápides e do gramado.

Em última análise, o local onde o farol se dirigia nada significava. Não havia nenhum corpo enterrado ao pé da lápide de granito que ele ia - não havia tido ninguém para enterrar.

Nem cinzas para colocar em uma vasilha - ou pelo menos nenhuma que você pudesse ter certeza, não as de um Audi que tinha pegado fogo.

Cerca de meia milha de voltas mais tarde, ele aliviou o pé do acelerador e deixou o carro deslizar para uma parada. Tanto quanto ele podia dizer, ele era o único em todo o cemitério, o que estava tudo bem para ele. Não havia razão para uma audiência.

Quando ele saiu, o ar frio não fez nada para limpar a cabeça, mas deu algo a seus pulmões, ele respirou fundo e caminhou sobre a grama irregular da primavera. Ele teve o cuidado de não pisar em nenhum dos lotes à medida que avançava - certo, não era como se os mortos fossem saber que ele estava acima de seu espaço aéreo, mas parecia uma coisa respeitosa a fazer.

O túmulo de Jane estava à frente, e ele diminuiu quando se aproximou. Ao longe, o som de um apito de trem cortou o silêncio - e o som oco, triste, era tão clichê do caralho, que ele sentiu que estava em algum filme que ele nunca iria sentar-se em casa para assistir, muito menos pagar para ver no cinema.

— Merda, Jane.

Inclinando-se, ele arrastou os dedos na parte superior da borda irregular do túmulo. Ele tinha escolhido a pedra de azeviche, porque ela não teria gostado nada de pastel ou desbotada. E a inscrição foi igualmente simples e descomplicada, apenas seu nome, datas e uma frase na parte inferior: DESCANSE EM PAZ.

Yep. Ele deu a si mesmo um A21 de originalidade nisto.

Lembrava-se exatamente onde ele estava quando ele descobriu que ela tinha morrido: no hospital - claro. Tinha sido no final de um longo turno que tinha começado com o joelho de um jogador de hóquei e terminado com uma espetacular reconstrução de ombro, graças a um drogado, que tinha decidido tomar um tiro no voo.

Ele saiu do centro cirúrgico e encontrou Goldberg esperando na sala de assepsia.

Um olhar para o rosto pálido de seu colega e Manny parou no processo de remoção de sua máscara cirúrgica. Com a coisa pendurada no seu queixo como um babador, ele exigiu saber o que diabos estava errado - ao mesmo tempo assumindo que era tanto um engavetamento de quarenta carros na autoestrada ou um acidente de avião ou de um incêndio em um hotel... Algo que fosse uma tragédia de toda a comunidade.

Exceto que em seguida, ele olhou sobre o ombro do rapaz e viu cinco enfermeiros e três outros médicos. Todos eles estavam no mesmo estado de Goldberg... E nenhum deles estava correndo para puxar outros funcionários para a rotação ou a preparação das salas cirúrgicas.

Certo. Foi um evento da comunidade. Sua comunidade.

— Quem? — Ele exigiu.

Goldberg olhou de volta para sua tropa de apoio e foi quando Manny tinha adivinhado. E mesmo que seu estômago tivesse congelado, ele manteve alguma esperança irracional de que o nome prestes a sair da boca de seu cirurgião não seria...

— Jane. Acidente de carro.

Manny não perdeu o ritmo.

— Qual é seu ETA22?

— Não há um.

Com isso, Manny não disse nada. Ele acabou de tirar a máscara de seu rosto, amassou-a e jogou-a no próximo lixo.

Quando foi passando, Goldberg tinha aberto a boca novamente.

— Nem uma palavra. — Manny latiu. — Nem. Uma. Palavra.

O restante da equipe havia tropeçado ao sair do seu caminho, separando tão certo e limpo como uma tela dividida ao meio.

Voltando ao presente, ele não conseguia se lembrar de onde tinha ido ou o que fez depois disso - não importa quantas vezes ele tivesse observado aquela noite tempos depois, essa parte era um buraco negro. Em algum ponto, porém, ele chegou ao seu apartamento, porque dois dias depois ele acordou lá em cima, ainda dentro da roupa sangrenta que ele havia operado.

O mais irritante da coisa toda era o fato de que Jane tinha salvado tanta gente que tinha estado em acidente de carro. A ideia de que ela tinha sido tomada dessa maneira, muito parecia como o retorno de Grim Reaper para reclamar todas as almas que ela tinha deixado fora do  alcance da mão da morte.

O som de outro apito de trem o fez querer gritar.

Isso e o bipe de seu Pager.

Hannah Whit. Outra vez?

Quem diabos...

Manny franziu o cenho e olhou para a lápide. A irmã mais nova de Jane tinha sido Hannah, se lembrou corretamente. Whit. Whitcomb?
 
Só que ela tinha morrido jovem.

E se não tivesse?

Loucura. Estimulação.

Deus, ela deveria ter trazido seus sapatos, Jane pensou enquanto marchava em torno do apartamento de Manny. Mais uma vez.

Ela teria deixado seu apartamento se ela tivesse uma ideia melhor de onde ir, mas até mesmo o cérebro dela, tão nítida como era, não conseguia jogar fora outra opção.

O toque de seu telefone não era exatamente uma boa notícia. Ela não queria dizer a Vishous que 45 minutos depois, ela ainda não tinha nada a relatar.

Ela pegou seu celular.

— Oh... Deus.

Esse número. Aqueles dez dígitos que ela tinha na chamada rápida em cada telefone que ela tinha possuído antes deste. Manny.

Quando ela teclou atender, sua mente estava em branco e os olhos cheios de lágrimas. Seu velho e querido amigo e colega...
 
— Alô. — Ele disse. — Sra. Whit?

No fundo, ela ouviu um apito.

— Olá? Hannah? — Esse tom... Era exatamente o mesmo que tinha sido um ano atrás: baixo, comandando. — Tem alguém aí?

O apito soou tranquilo novamente.

Jesus Cristo... Ela pensou. Ela sabia onde ele estava.

Jane desligou e transportou-se fora de seu apartamento, fora do centro da cidade, fora do passado nos subúrbios. Viajando em um borrão na velocidade da luz, suas moléculas atravessaram a noite girando, girando cobrindo milhas como se fossem polegadas.

O cemitério Pine Grove era o tipo de lugar que você precisava de um mapa, mas quando você era éter no ar, você poderia cobrir uma centena de hectares, em uma batida e meia de coração.

Quando ela saiu da escuridão em uma sepultura, ela respirou e segurou o ar e quase chorou.

Lá estava ele em carne e osso. Seu chefe. Seu colega. O que ela tinha deixado para trás. E ele estava em pé sobre uma lápide negra que tinha seu nome gravado.

Ok, agora ela sabia que tinha tomado a decisão certa de não ir a seu funeral. O mais próximo que ela tinha estado foi lendo sobre ele no Caldwell Courier Journal - e a imagem de todos aqueles médicos e funcionários do hospital e os pacientes partiram-na ao meio.

Isso era muito pior.

Manny se parecia exatamente como ela se sentia: arruinado por dentro.

Jesus, a sua loção pós-barba ainda cheirava bem... E apesar de ter perdido algum peso, ele ainda era belo como o pecado, com o cabelo escuro e rosto duro. Seu terno era perfeitamente adaptado e listrado - mas tinha sujeira em volta da bainha da calça. E seus sapatos estavam igualmente sujos, fazendo-a perguntar onde diabos ele estivera. Ele certamente não tinha se sujado no túmulo. Depois de um ano, o solo estava coberto com grama...
 
Ah, espere. Seu túmulo era provavelmente assim desde o primeiro dia. Ela não tinha deixado nada para enterrar.

Como os dedos descansando na pedra, ela sabia que ele tinha que ter sido o único a escolher a coisa. Ninguém mais teria o bom senso de obter exatamente o que ela queria.

Nada frufru ou prolixo. Curto, doce, ao ponto.

Jane limpou a garganta:

— Manny.

Sua cabeça subiu, mas ele não olhou para ela - como se ele estivesse convencido de que ele tinha ouvido falar apenas em sua mente.

Tornando-se totalmente corporal, ela falou mais alto.

— Manny.

Em qualquer outra circunstância, a resposta teria sido um gargalhar. Ele virou-se, em seguida, gritou, tropeçou em sua lápide, e caiu sobre sua bunda.

— O que... Inferno... Você está fazendo aqui? — Ele engasgou. A expressão em seu rosto começou como terror, mas mudou rapidamente para a descrença absoluta.

— Sinto muito.

Era totalmente ridículo, mas foi tudo o que saiu de sua boca.

E muito para pensar em seus pés. Encontrando os olhos castanhos dele, de repente ela não tinha nada a dizer.

Manny saltou a seus pés, e seu olhar escuro subia e descia sobre seu corpo. E para cima e para baixo. E para cima... Para parar em seu rosto.

Foi quando veio a raiva. E uma dor de cabeça, evidentemente, dada a forma como ele estremeceu e esfregou as têmporas.

— Isso é algum tipo de piada?
 
— Não. — Ela desejava que fosse. — Sinto muito.
 
Sua carranca era muito familiar, e que ironia ser nostálgica sobre um olhar furioso assim.
 
— Você sente muito.
 
— Manny, eu...
 
— Eu enterrei você. E você sente muito? Que porra é essa?
 
— Manny, eu não tenho tempo para explicar. Eu preciso de você.
 
Ele olhou para ela por um longo momento.

— Você aparece um ano depois de estar morta e você precisa de mim?

A realidade de quanto tempo tinha passado pesava sobre ela. No topo de tudo.
 
— Manny... Eu não sei o que te dizer.
 
— Oh, realmente? Oh, a propósito, diferente do que você pensa eu estou viva.

Ele olhou para ela. Apenas olhou para ela.

Então, numa voz rouca, ele disse:

— Você tem alguma ideia de como foi perdê-la? — Ele rapidamente passou a mão sobre os olhos. — Você tem?

A dor que ela sentiu no peito tornou difícil para respirar.

— Sim. Porque eu perdi você... Eu perdi minha vida com você e com o hospital.

Manny começou a andar, indo e voltando na frente de sua lápide. E embora ela quisesse, ela não sabia como chegar muito perto.

— Manny... Se tivesse havido uma maneira de voltar para você, eu teria.

— Você fez. Uma vez. Eu pensei que era um sonho, mas não foi. Era sonho.
 
— Não.

— Como você entrou no meu apartamento?

— Eu apenas entrei.

Ele parou e olhou para ela, sua lápide entre eles.

— Por que você fez isso, Jane? Por que fingir sua morte?

Bem, ela não tinha, na verdade.

— Eu não tenho tempo para explicar agora.

— Então o que diabos você esta fazendo aqui? Que tal você explicar isso?

Ela limpou a garganta.

— Tenho um paciente que está sob meus cuidados e eu quero que você venha dar uma olhada. Eu não posso dizer onde, eu tenho que levar você, e eu não posso te dar um monte de detalhes e eu sei que isso não é justo... Mas eu preciso de você. — Ela queria arrancar os cabelos fora. Cair chorando. Abraçá-lo. Mas ela continuou, porque ela simplesmente tinha que fazer. — Eu estive procurando por você há mais de uma hora, por isso estou sem tempo. Eu sei que você está chateado e confuso e eu não o culpo. Mas fique bravo comigo depois - só venha comigo agora. Por favor.

Tudo o que podia fazer era esperar. Manny não era alguém que falava sobre coisas, e você não pode convencê-lo. Ele iria fazer a escolha... Ou ele não iria.

E se este fosse o caso, infelizmente, ela ia ter que chamar os Irmãos. Por mais que ela amasse e sentisse falta de seu velho chefe, Vishous era o seu homem, e ela ficaria bolada se deixasse qualquer acontecer com sua irmã.

De um jeito ou de outro, Manny ia estar operando à noite.




21. Nota da Tradutora: Equivalente a um 10 na escala de notas brasileiras.

22. Nota da Tradutora: Tempo Estimado de Chegada (Estimated Time of Arrival), unidade de medida de tempo para chegada de um objeto a seu destino.

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